Redutos do Centrão inflam números do SUS e aumentam tetos de emendas
Cidades têm números de produção muito maiores do que quatro anos atrás, mas dados nem sempre batem com a realidade local
Beneficiadas com R$ 800 milhões em emendas de relator durante o governo Jair Bolsonaro, prefeituras alagoanas aumentaram em até oito vezes os atendimentos que registraram no SUS, nos últimos quatro anos, muitas vezes de maneira desproporcional às populações locais ou com dados que não condizem com a realidade encontrada pela coluna ao visitar os municípios.
Uma série de reportagens que a coluna publica hoje mostra a forma com que cidades, como Roteiro, Feira Grande, Barra de São Miguel, entre outras, informam números de atendimentos, consultas, suturas, administrações de remédios e outros procedimentos que em alguns casos superam até a capacidade de atendimento das equipes de saúde das cidades.
O aumento nos números permite, em tese, que as cidades ampliem o teto de repasses que recebem do Ministério da Saúde e assim sejam destinatárias de mais dinheiro por meio de emendas parlamentares. A Polícia Federal (PF) e a Controladoria-Geral da União (CGU) têm investigações abertas sobre os dados de produção do SUS em Alagoas e em outros estados.
Um levantamento da coluna apontou que cerca de um quarto dos 103 municípios de Alagoas aumentaram em mais de 60% sua produção no SUS, na comparação entre o ano de 2019, pré-pandemia, e o de 2022.
A cidade com o maior aumento, de oito vezes, foi Barra de São Miguel, administrada pelo ex-senador Benedito de Lira, pai do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, do PP. Há uma investigação do Ministério Público sobre o tema. A administração de medicamentos, por exemplo, aumentou em 46 vezes, e os gastos são proporcionalmente altos.
Há outros dados de explicação difícil. Em Feira Grande, cidade de 22,7 mil habitantes, foram registradas 282 mil suturas em 2022. É como se cada morador tivesse se acidentado, precisado de uma sutura e sido atendido pelo sistema de saúde local, em média, 12 vezes ao ano.
A enfermeira-chefe de um dos postos de pronto-atendimento da cidade, Priscila Barbosa, elogiou o sistema de saúde onde trabalha. “Tem dia que tem que ter dois médicos atendendo aqui.” Mas estranhou o número de suturas no DataSUS, sistema de dados do SUS. Em um plantão incomum, bastante agitado, Barbosa lembrou que já viu até cinco acidentes em um único dia, com cinco suturas no total. Mesmo que todos os dias fossem assim, seriam 1.825 suturas no ano. O registro no SUS “pode estar errado”, reconheceu. A Secretaria de Saúde da cidade foi procurada pela coluna, mas não respondeu.
No governo Jair Bolsonaro, Feira Grande recebeu R$ 7,3 milhões em emendas de relator para incremento de ações de saúde. O deputado Arthur Lira, presidente da Câmara, indicou R$ 3 milhões, quase metade do total, entre 2021 e 2022. Como a cidade continua aumentando a administração de medicamentos na atenção especializada, seguirá havendo margem para uma verba gorda nos próximos anos.
Em Roteiro, no litoral alagoano, o número de visitas domiciliares é 10 vezes maior do que os funcionários do SUS dizem ter estrutura para fazer. Apesar de repasses milionários, a cidade deixou a população sem medicamentos e sem exames por meses, além de ter registrado 10 vezes mais visitas do que os funcionários dizem ter capacidade de fazer. A cidade também recebeu emendas de relator destinadas por Lira.
Em Jaramataia, que recebeu R$ 1,7 milhão em emendas de relator a pedido do deputado Marx Beltrão, do PP, os números passaram de 4 mil atendimentos no SUS em 2019 para 26,6 mil em 2022. No mesmo intervalo, o município também duplicou a quantidade de consultas, passou a realizar centenas de exames e viu o total de medicamentos administrados a pacientes saltar de zero para 2.153. Procurada, a prefeitura não explicou o aumento.
O incremento nos números já beneficiou Jaramataia financeiramente. Em 2021, seu teto para assistência de média e alta complexidade era R$ 51 mil; em 2022, já subiu para R$ 79 mil.
Já em Passo de Camaragibe, os números permaneceram os mesmos, exceto por uma explosão em “atividades educativas para o setor regulado”. A definição desse procedimento é a promoção de eventos, palestras e atividades de divulgação sobre vigilância sanitária.
A cidade registrou 40 ações desse tipo em 2021 e 101 mil no ano seguinte, 2022, o que a coloca como o terceiro município de todo o país que mais realiza atividades educacionais no tema. Está atrás apenas de Santo André (SP), com 560 mil, e Trindade (GO), com 103 mil, que respectivamente têm 721 mil e 150 mil habitantes. O município recebeu R$ 1,7 milhão em emendas de relator a pedido do deputado Nivaldo Albuquerque. O prefeito foi procurado, mas não respondeu o contato da reportagem.
Servidores do sistema de saúde municipal relatam dificuldade em abastecer os números do SUS e dizem que as cidades estão passando por um processo de informatização, o que pode explicar discrepâncias. Como mostrou a coluna, uma lista com cidades em que houve saltos atípicos de produção foi enviada pelo Ministério da Saúde à PF e norteia uma investigação.
No Maranhão, houve aumentos artificiais pelas prefeituras para ampliar seus repasses. Com base nisso, a Polícia Federal identificou esquema de desvio de dinheiro público no estado e deflagrou, no fim do ano, a Operação Quebra-Ossos. Também houve auditorias que pediram a devolução de milhões enviados às prefeituras indevidamente.
Segundo o Ministério da Saúde informou à coluna por meio da Lei de Acesso à Informação, ainda não há auditoria finalizada no SUS para apurar se cidades de Alagoas conseguiram aumentar artificialmente seu teto de despesas. O órgão não respondeu sobre eventuais auditorias em andamento.
Em nota, o ministério disse que “vem aprimorando as regras de negócio dos sistemas oficiais de informação, objetivando reduzir os riscos de registros de produção assistencial distorcidos ou irregulares” e que, ao detectar números excessivos ou discrepantes, encaminha os achados aos órgãos competentes. Estão sendo analisados dados de produção de 467 municípios.
Metrópoles