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De onde o governo pode tirar dinheiro para cumprir o arcabouço fiscal

O cerne do novo arcabouço fiscal é claro: garantir um valor mínimo de gastos e limitar o crescimento das despesas ao próprio crescimento da receita. Ou seja, a lógica fundamental para que o governo consiga cumprir o que prevê arcabouço fiscal e as promessas de campanha, como o aumento do benefício do Bolsa Família, é a de que será necessário arrecadar mais.

Uma vez que o próprio ministro da Fazenda, Fernando Haddad, disse que não haverá aumento da carga tributária e nem criação de novos impostos, resta ao chefe da equipe econômica encontrar outras fontes de receita que não a de subir tributos.

“Se por carga tributária se entende criação de novos tributos ou aumento de alíquota dos tributos existentes, a resposta é: não está no nosso horizonte. Não estamos pensando em CPMF, não estamos pensando em acabar com o Simples, não estamos pensando em reonerar a folha de pagamento”, disse Haddad, na coletiva de anúncio do arcabouço fiscal.

Especialistas ouvidos pelo Metrópoles são unânimes na visão de que a nova regra orçamentária (entenda aqui o arcabouço fiscal) se apoia principalmente no aumento da arrecadação. Nos cálculos de Rafaela Vitória, economista-chefe do Banco Inter, será necessário recompor receitas entre R$ 50 bilhões e R$ 150 bilhões por ano, no período entre 2023 e 2025, para atingir os objetivos a que o governo se propõe.

O próprio ministro da Fazenda admitiu essa necessidade e disse que o governo trabalhará para buscar R$ 100 bilhões a mais no orçamento dos dois próximos anos. Mas, na conta de economistas, será necessário encontrar uma forma de arrecadar 150 bilhões de reais a mais, não 100 bilhões, para dar contas dos gastos suplementares que o governo quer fazer. Um dos caminhos que parecem óbvios será tributar setores da economia que antes não eram tributados. Na coletiva de imprensa, membros da equipe econômica citaram, por exemplo, o projeto em estudo que prevê a tributação de apostas esportivas eletrônicas.

Não se sabe ainda o potencial de geração de receitas de medidas como essa. Por isso, os economistas que examinaram a nova regra enxergam como mais plausível o caminho de reverter a renúncia de receitas.

“O governo deixa de arrecadar cerca de R$ 400 bilhões a R$ 450 bilhões em regimes tributários especiais, desonerações, benefícios à Zona Franca, Simples Nacional e outros. Claro que há espaço para cortar esse tipo de coisa, mas é difícil, em razão da pressão dos grupos de interesse e porque alguns desses gastos tributários realmente se justificam, por produzir efeitos positivos”, afirma Felipe Salto, ex-secretário da Fazenda de São Paulo e economista-chefe da Warren Renascença.

Nó político

Está claro por que o governo pretende casar a agenda do arcabouço fiscal com a reforma tributária. No projeto de reforma do secretário especial da Fazenda, Bernard Appy, não há previsão para regimes especiais que reduzem a alíquota de impostos para determinados setores ou empresas. Se aprovado, isso ajudaria o governo a ampliar, com uma única tacada, a arrecadação federal.

“A distorção tributária no país é gigantesca e a base tributária é um verdadeiro amontoado de ‘puxadinhos’. Temos assim um problema na mesa. Buscar reonerar certos setores ou mesmo começar a tributar setores que não estão tributados é uma briga política com P maiúsculo”, avalia o economista André Perfeito.

Se decidir fazer isso de forma pontual, analisando caso a caso, o governo precisaria ter muita munição junto ao Congresso. Como lembra o ex-secretário da Fazenda de São Paulo, o parlamento tende a ser sensível à pressão exercida pelos grupos privados que têm interesses específicos nas pautas de deputados e senadores. Para complicar ainda mais, Lula não tem o mesmo poder político — ou o de barganha — dos dois primeiros mandatos, para aprovar temas considerados indigestos pelo Congresso, nem tampouco há garantia de aprovação da reforma tributária na sua integralidade. Como já disse Arthur Lira, a reforma tributária a ser feita será “a possível”.

Nas contas da Warren Renascença, mesmo com a limitação imposta pelo novo arcabouço fiscal, em 2023 haverá um déficit primário de R$ 100 bilhões, o que equivale a 1% do PIB. Se não conseguir encontrar fontes adicionais de receitas para cobrir o buraco, o governo não conseguirá cumprir a meta do primário já no primeiro ano de vigência do arcabouço – a meta é de um déficit de 0,25% a 0,75% neste ano.

Caso isso aconteça, o próprio arcabouço prevê uma queda no limite de expansão de despesas para 50% da expansão da receita, o que pode frustrar os planos de Lula de aumentar o salário mínimo e os benefícios sociais, como o Bolsa Família.

Controle da dívida

Por fim, mesmo que consiga cumprir a meta de resultado primário, tirando da cartola uma arrecadação extra de R$ 100 bilhões, o governo pode ter problemas para colocar a dívida pública federal no eixo.

A necessidade de que sejam produzidos resultados primários positivos existe justamente para reduzir o nível de endividamento do Estado. Segundo os cálculos da Fazenda, seria possível estabilizar o passivo federal apenas cumprindo um superávit de até 1% até 2026. No entanto, economistas que atuam no mercado não creem que essa seja uma projeção realista.

“Na nossa visão, o resultado primário necessário para estabilizar a dívida como percentual do PIB é de cerca de 2,0% a 2,5%”, avalia Felipe Salles, economista-chefe do Banco C6.

Na primeiríssima hora, a bolsa e o câmbio reagiram bem ao anúncio do arcabouço fiscal, mas não pelas qualidades intrínsecas à proposta, que poderá sofrer modificações profundas no Congresso. A reação foi positiva porque a) agora há, pelo menos, uma regra fiscal para substituir o teto de gastos; b) temia-se um arcabouço pior do que o apresentado pelo ministro Fernando Haddad.

Seja como for, o quadro real é este: o país tem um governo deficitário que quer gastar mais, na suposição de que poderá arrecadar mais, sem subir impostos, num contexto de desaceleração econômica e inflação alta, represada a duras penas por uma taxa de juros altíssima, o que também encarece o serviço da dívida pública e aumenta o déficit governamental. Para não falar de um quadro mundial bastante adverso.

Metrópoles

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