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‘Paris está desconectada da África’: especialistas analisam sentimento antifrancês em golpes no Gabão e no Níger

O golpe de Estado no Gabão é o último de uma onda de insurreições na África que começou em 2020 e atingiu o Mali, o Burkina Faso e o Níger, todas ex-colônias francesas. Diante da situação no oeste da África, a França adota diferentes estratégias, mas a “desconexão” de Paris com o continente é antiga, de acordo com especialistas, que afirmam que a França não entendeu a evolução do continente.

O presidente francês Emmanuel Macron (esquerda) com o presidente gabonês Ali Bongo Ondimba em encontro bilateral no Palácio Presidencial em Libreville, durante visita oficial ao Gabão, em 1° de março de 2023. AFP – LUDOVIC MARIN

Um mês após o golpe de estado no Níger, um dos últimos aliados de Paris na região do Sahel, na África, nesta quarta-feira (30), foi a vez do Gabão viver uma insurreição que derrubou a dinastia Bongo, no poder há mais de 50 anos.

“O golpe de Estado era amplamente esperado pela população gabonesa, para quem já é uma vitória o fato de já não haver um Bongo à frente do país”, disse um ativista gabonês na França. “Mas a França não mediu esta vontade de mudança e não vacilou perante um processo eleitoral duvidoso, acredita o ativista, cofundador da ONG Copil Citoyen.

O Gabão, símbolo durante décadas da chamada “Françafrique”, um sistema de práticas opacas e redes de influência herdadas do colonialismo, que marcou a relação entre os governos franceses e africanos, já vivia “o fim do regime”. Mas a França, cujo presidente Emmanuel Macron visitou Libreville em março, ficou “surpresa “, julga o pesquisador Antoine Glaser.

Problema presente em todas ex-colônias francesas na África

Um problema presente em todas ex-colônias francesas na África. “A França não fez um balanço da evolução das sociedades africanas, da sua juventude conectada e globalizada”, analisa Bakary Sambe, diretor do Instituto Timbuktu em Dakar.

Paris enfrenta a chegada de “modelos concorrentes e desinibidos que colocam as relações econômicas à frente da democracia, como a China, a Índia, a Turquia, a Arábia Saudita e, claro, a Rússia”, acrescenta.

Militar e politicamente, a França enfrenta agora uma “rejeição da classe política” apoiada por ela, “que se espalha na região”, segundo Jean-Hervé Jézéquel, do Grupo de Crise Internacional (ICG), apesar dos sucessos reais das capanhas contra os jihadistas na região e em termos de desenvolvimento.

“A França carrega o fardo das suas inconsistências”, acredita Bakary Sambe. Paris apoiou o primeiro golpe no Mali em 2020 e, no ano seguinte, apoiou o chadiano Mahamat Idriss Déby Itno, que chegou ao poder sem um processo constitucional. “Hoje, ela condena o golpe de estado no Níger, mas sua posição inflexível no país, onde Paris mantém 1.500 soldados e seu embaixador, apesar de um ultimato da junta, não é ‘sustentável’ por muito tempo”, analisa o especialista.

Os franceses apostaram tudo no Níger, foi o laboratório para a recomposição de sua estratégia no Sahel, o país foi saqueado, há motivos para insatisfação.

“Os franceses apostaram tudo no Níger, foi o laboratório para a recomposição de sua estratégia no Sahel, o país foi saqueado, há motivos para insatisfação. Se quisermos encontrar rotas de saída realistas, não podemos mais manter esta visão “, defende o pesquisador Yvan Guichaoua da Escola de Estudos Internacionais de Bruxelas.

Principalmente porque a França parece isolada diante de aliados europeus e americanos mais cautelosos.

Para Bakary Sambe, os americanos (1.100 soldados no Níger) adotaram “uma posição bastante realista, até mesmo oportunista”, tendo ao mesmo tempo o cuidado de não cortar relações com os golpistas. Quanto à Europa, “ela está num trem cuja locomotiva França descarrilou e cujos vagões estão perdidos”.

O presidente do Gabão, Omar Bongo, com o presidente francês Valery Giscard d'Estaing durante visita de Bongo à França, em 26 de setembro de 1974.
O presidente do Gabão, Omar Bongo, com o presidente francês Valery Giscard d’Estaing durante visita de Bongo à França, em 26 de setembro de 1974. © AFP

Tentativa de mudança

Desde as desilusões no Burkina e no Mali, onde interveio a pedido de Bamako, a França tentou uma mudança de estratégia, uma abordagem menos militar centrada nas relações com a sociedade civil e no “soft power”.

Mas “a mudança de rumo não pode ser decretada assim”, acredita Yvan Guichaoua, para quem “as preocupações europeias e francesas em torno de África” continuam centradas “no pânico migratório ou na questão da segurança”.

Apesar das tensões e dos contratempos, a ministra de Relações Exteriores francesa, Catherine Colonna, disse terça-feira estar “convencida de que as relações entre a França e os países africanos têm um futuro brilhante pela frente”.

“É uma negação desconcertante da situação atual”, questiona Jean-Hervé Jézéquel. “Em vez de falar de um futuro brilhante, temos de rever os fundamentos das nossas relações com os Estados e as sociedades da região e aprender a mudar o tom.”

Golpes antifranceses?

Para especialistas, os golpistas do Níger e do Gabão têm um perfil similar, mas as circunstânicas são muito diferentes. Os dois casos, impactam nas relações econômicas e diplomáticas dos países com a França.

Para Elie Tenenbaum, pesquisador do Instituto Francês de Relações Internacionais, tanto no Níger, como no Gabão, os golpes não são antifranceses. “Apesar da  motivação inicial ser o empoderamento, os golpes refletem tensões políticas internas”, afirma. “O problema é que a França está associada ao apoio a estes regimes, de uma forma relativamente recente no que diz respeito ao presidente Mohamed Bazoum e de uma forma muito antiga e histórica com Ali Bongo”, diz.

A família Bongo é inseparável do apoio da França desde a sua ascensão ao poder, em 1967. “Todos os homens e mulheres gaboneses associam o poder de Libreville ao apoio francês. Podemos, portanto, temer que o desejo de uma ruptura política com a família Bongo envolva também um desejo de ruptura com aqueles que foram os seus parceiros mais próximos, incluindo a França”, explica Elie Tenenbaum.

A França torna-se um espantalho político extremamente útil para todas as potências em transição, especialmente quando elas próprias são condenadas pela forma como chegaram ao poder

Para o especialista, apesar de a França já não ter vontade de proteger os regimes autocráticos, continua a ser alvo de movimentos pan-africanos para uma interferência que, de fato, já não existe, mas que continua a ser estigmatizada, castigada pelos opositores.

“A França torna-se um espantalho político extremamente útil para todas as potências em transição, especialmente quando elas próprias são condenadas pela forma como chegaram ao poder”, afirma.

Manifestantes arrancaram a placa da Embaixada da França no Níger, em 30 de julho de 2023.
Manifestantes arrancaram a placa da Embaixada da França no Níger, em 30 de julho de 2023. © AFP

Consequências econômicas

Um mês após a derrubada do governo no Níger pelos militares e com o golpe de Estado no Gabão as consequências econômicas já começam a ser sentidas pelos franceses.

A primeira empresa diretamente afetada é o grupo de mineração Eramet, que anunciou na quarta-feira (30) que suas atividades foram “encerradas”, com o objetivo de “proteger a segurança de (seu) pessoal e a integridade de (suas) instalações”.

O grupo francês, presente através de duas subsidiárias, a Comilog (empresa mineiradora de Ogooué) na extração de manganês, e a Setrag (empresa de exploração Transgabonais) nas operações ferroviárias, emprega 8.000 pessoas no país, maioritariamente gabonesas.

O Gabão é o segundo maior produtor de manganês do mundo, metal utilizado na produção de aço e baterias, de acordo com a empresa Coface, especializada em gestão de risco.

A Comilog extrai 90% do manganês do subsolo gabonês, segundo dados do Ministério da Economia da França, o que representou 4,8 milhões de toneladas em 2019. O restante é extraído pela chinesa CICMHZ (Hangzhou Industrial Mines Company), e pela empresa Nouvelle Gabon Mining (NGM ), uma subsidiária do grupo indiano Coalsale Group.

A petrolífera francesa TotalEnergies também está presente há mais de 80 anos no país, que é o quarto produtor de petróleo da África Subsaariana e membro da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP) desde 2016.

A empresa afirmou que está “mobilizada para garantir a segurança de seus colaboradores e suas operações, o que constitui a sua principal prioridade”, sem dizer mais nada.

A TotalEnergies possui duas subsidiárias no país: TotalEnergies EP Gabon e TotalEnergies Marketing Gabon (marketing e serviços). É também a principal referência na distribuição de produtos petrolíferos no país com 45 postos, o que representa uma presença modesta no continente.

A empresa também adquiriu uma participação de 49% na Compagnie des Bois du Gabon (CBG) no ano passado para desenvolver um modelo de gestão florestal.

De forma mais ampla, o Gabão tornou-se novamente, no ano passado, o principal país das exportações francesas dentro da Comunidade dos Estados da África Central (Cemac), que inclui Camarões e Chade, com € 536 milhões, segundo dados do Ministério da Economia francês.

(Com informações da AFP)

 

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