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Itamaraty transfere diplomatas e diminui pessoal de embaixadas na África, que Lula prometeu priorizar

Ao menos 13 diplomatas terão que sair de escritórios do Brasil no continente africano até julho. Em contrapartida, o Itamaraty diz que outros 12 novos serão transferidos para a região, mas não necessariamente para os mesmos postos, que perderão parte de suas equipes. Dos 29 diplomatas que serão mandados de Brasília para o exterior, apenas 3 virão para o continente africano.


Palácio do Itamaraty, sede da diplomacia brasileira, em Brasília.
 © Flickr / Ministério das Relações Exteriores do Brasil

Além disso, dos outros 36 que já trabalham fora do Brasil, mas que irão para novos países, oito serão mandados para escritórios na África. Essas mudanças acontecem a cada seis meses. O presidente da Associação de Diplomatas Brasileiros (ADB), Arthur Nogueira, que é embaixador na Zâmbia, disse que “os postos continuarão sublotados, alguns apenas com caras novas”.

O número de diplomatas voltando para Brasília é maior: 72, segundo o Itamaraty. Só que, de acordo com a portaria 566, que traz a lista do último plano de remoções, serão 53 diplomatas retornando até julho.“Os diplomatas que não constam da publicação que divulga o resultado do mecanismo de remoções foram removidos ao longo do semestre, em portarias específicas”, informou por e-mail, sem detalhar quem são e de onde virão os outros 19 diplomatas.

O Itamaraty alega que precisa reforçar a equipe que cuidará de grandes reuniões que o Brasil sediará até o ano que vem, como G20, BRICS e COP30.

Sempre tem isso na política externa brasileira pra África: cria-se uma narrativa sofisticada e positiva, mas que muitas vezes não acompanha a realidade

Dos diplomatas que voltarão para Brasília, a reportagem apurou que boa parte vai para as secretarias de Clima, Energia e Meio Ambiente, de Assuntos Econômicos e Financeiros e de América Latina e Caribe. Apenas um acabará na secretaria de África e Oriente Médio.

“Sempre tem isso na política externa brasileira pra África: cria-se uma narrativa sofisticada e positiva, mas que muitas vezes não acompanha a realidade”, lamentou o pesquisador sênior Gustavo de Carvalho, que se dedica ao tema Governança e Diplomacia Africana no Instituto Sul-Africano de Assuntos Internacionais (SAIIA).

No início do ano, o ministério das Relações Exteriores anunciou novas regras e determinou que diplomatas que estão há mais de seis anos no exterior voltassem ao Brasil até julho, a menos que quisessem ir para países de um grupo específico.

O embaixador Joel Sampaio, chefe da assessoria de imprensa do Itamaraty, afirmou que diplomatas que estão saindo da África escolheram não continuar no continente. “Eles poderiam ter optado por qualquer um dos 22 postos do Anexo A, 12 dos quais localizados na África. Essa é uma escolha voluntária das pessoas. Os diplomatas têm a prerrogativa de escolher dentre as opções que lhes são apresentadas, assim como têm prerrogativa de voltar para Brasília”, disse o chefe da assessoria de imprensa do Itamaraty.

Escassez de recursos e falta de prioridade

A RFI conversou com alguns diplomatas que terão que sair do continente africano até o meio do ano. Um deles classificou a justificativa do embaixador como “infeliz”. “Colocar que é uma questão de escolha é muito exagerado. Eu iria para outro posto na África, mas com o mínimo de planejamento”, disse.

Nenhum deles relatou ter se arrependido de ter vindo para a África, mas todos falaram da escassez de recursos e falta prioridade em se tratando da política externa brasileira. “Parece que os postos na África estão sendo esquecidos, sucateados. Não tem apoio, não tem estrutura. Vale muito pela experiência de estar neste continente, mas recompensa formal para incentivar as pessoas a virem para a África não há”, disse outro.

Os entrevistados contaram que há diplomatas que extrapolariam o prazo máximo de 10 anos para permanência no exterior se assumissem um novo posto, pois precisariam ficar ao menos dois anos em um novo país. “Certamente é um desestimulo a quem quiser vir a partir de agora. Nossa vida se torna mais precária. Com a falta de pessoal, a gente não consegue fazer uma verdadeira política externa aqui”, relatou outra fonte.

“Diplomata não é missionário”

Quem também conversou com a RFI, mas igualmente sob condição de anonimato, lembrou que “diplomata não é missionário” e que é justo pensar na carreira, já que tudo indica que “quem ficar aqui dificilmente será promovido”. “Quem ficar, ou desistiu da carreira ou não entendeu como tudo funciona”, afirmou um deles. Relatos de frustração não faltam. “Tem um grande potencial em vários lugares aqui, inclusive para aumentar a cooperação, mas o olhar de Brasília para cá não é suficiente para enxergar isso”, desabafou um deles.

Diplomatas e embaixadores insistem em falar em um “esvaziamento” de postos africanos, mas não imediato. É que eles acreditam que, com essa nova regra, nas próximas remoções dificilmente algum diplomata vai querer trabalhar na África, raciocínio que a doutora em Ciências Políticas pela UERJ Renata Albuquerque Ribeiro não considera exagerado.

“Não é a questão de uma medida. É um afrouxamento que está explícito em várias situações. Como que o Brasil não tem uma política direcionada para o favorecimento da permanência desses diplomatas na África, enquanto eles estão por lá? A gente sabe que eles enfrentam uma série de dificuldades, não têm o ‘prestígio’ que os cargos da Europa têm, infelizmente. Não têm algum tipo de incentivo no sentido de ter uma política pública ou um plano de carreira que facilite essa ida. Então, de certa forma, eu entendo esses diplomatas”, disse.

Alegando um esforço de diminuir a concentração em países mais cobiçados, o Brasil cortou este ano 95 vagas de diplomatas no exterior, sendo a maioria em países do norte global. E ainda criou uma lista de opções especificamente com países que precisam de mais diplomatas. Essas foram as duas medidas reforçadas pelo embaixador Joel Sampaio para defender que o Itamaraty tenta enfrentar o problema da sublotação de postos. “Nunca se buscou esvaziar posto nenhum”, frisou.

Todo mundo quer ir para Paris. É lá que você encontra quem vai alavancar a sua carreira hoje

O Itamaraty usa quatro letras para separar os escritórios brasileiros no exterior: A e B, basicamente para os que ficam no norte global, e C e D, em suma os que estão em países africanos e outros onde há conflitos. É raro um diplomata começar a carreira no exterior pela África. “Nos últimos três anos, 12 diplomatas estiveram lotados em postos do grupo D nos seis primeiros anos de serviço no exterior de suas respectivas carreiras”, informou o ministério das Relações Exteriores em resposta a um pedido feito com base na Lei de Acesso à Informação.

“Todo mundo quer ir para Paris. É lá que você encontra quem vai alavancar a sua carreira hoje. Essas pessoas vão acabar na presidência ou no gabinete do ministro. Ou serão, mesmo, ministros”, disse o presidente da ADB, destacando que o Brasil atualmente precisa de cerca de 500 diplomatas a mais do que tem (hoje em dia são cerca de 1500). Ele reforça que “a carreira é toda focada em promoções que são feitas por um mecanismo completamente obscuro. É tudo secreto” e precisa de uma grande reforma.

A associação tem um projeto que prevê mudanças e deve, por exemplo, forçar a passagem do diplomata que quer um dia se tornar embaixador pelo continente africano. “Nossa ideia é: se você não tiver, em uma certa altura da sua carreira, passado pela África, Ásia ou pelo Caribe, onde estão as embaixadas menos charmosas, você não vai subir para classe acima da sua”, explicou o presidente da ADB.

O pesquisador sênior Gustavo de Carvalho lembra que manter embaixadas na África bem estruturadas é essencial. “A implementação de política externa requer a capacidade burocrática do MRE em avaliar oportunidades, implementar prioridades e engajar com governos no continente.

Potências aumentam presença no continente africano

Com uma redução de postos ou no número de diplomatas em missões, diminui também a capacidade do Estado brasileiro em, de fato, implementar uma agenda de promoção de comércio, investimentos, cooperação técnica e política. É basicamente um dilema de alocação de recursos, incluindo humanos. Com menos recursos humanos, o custo de oportunidade fica maior levando a um engajamento no continente mais superficial”, explicou.

Enquanto isso, grandes potências já mudaram seus discursos com a África e aumentam cada vez mais suas presenças no continente que deverá abrigar um quarto da população mundial até 2050. “O Brasil de 2024 não irá conseguir os mesmos resultados que teve nos anos 2000. A prática e narrativa de atores externos na África aumentaram muito nos últimos 20 anos”, afirmou.

Se o Brasil quiser ter impacto, vai ter de pensar mais seriamente no que quer, e no que pode oferecer. E o foco no momento é menos na parte ‘soft’ de cooperação. É investimentos e comércio como grande motor. Não só com a China, mas crescentemente com a Índia, Arábia SauditaTurquia e outros. O espaço está mais ocupado, e com atores africanos tendo opções”, concluiu Gustavo de Carvalho.

“O continente africano não é o único que tenha postos com dificuldades de lotação e o Itamaraty precisa olhar para todos”, argumentou o chefe da assessoria de imprensa do Itamaraty.

Uma prova disso é o telegrama enviado à Brasília no dia 30 de abril, ao qual a RFI teve acesso, assinada pelo embaixador do Brasil em Bangladesh, na Ásia. “Esta embaixada começa e termina na chefia e não é possível ao chefe do posto responder por responsabilidades que deveriam ser divididas entre ele e pelo menos mais seis funcionários”, informa o telegrama, onde o embaixador também destaca que “não é possível seguir assim” e “sem meios adequados, funcionais e financeiros, a embaixada experimenta crescentes dificuldades para funcionar a contento”. Ele também enfatiza o risco para os serviços consulares, diante do “crescente número de pedidos de visto e solicitações de resposta ao sistema judicial brasileiro”.

Pouca representação

Mas dos 19 postos do Brasil no exterior onde atualmente só há um diplomata, 14 estão no continente africano. Segundo o Itamaraty, 61,4% das vagas nas 33 embaixadas e nos 2 consulados brasileiros na África estão preenchidas. Em escritórios que ficam nos Estados Unidos e na Europa Ocidental este percentual é de 95%, de acordo com um levantamento da ADB divulgado no início deste ano.

E o Brasil ainda tem sete escritórios de representação no continente africano sem sequer um embaixador no comando, inclusive na Nigéria, a maior economia da África. Diplomatas que devem ir para duas dessas embaixadas foram sabatinados pelo Senado, no final de abril.

O que a gente vê é disputa política por esses cargos. E quando é o continente africano, o Brasil passa essa mensagem: um certo desinteresse e, claro, de um desengajamento que é muito frustrante

Para a doutora em Ciências Políticas pela UERJ, Renata Albuquerque Ribeiro, isso indica uma falta de prioridade no desenho da política externa. “Deixa um vazio também simbólico muito grande. Tem ainda a perda na imagem que o Brasil passa de que esse país não é uma prioridade, não tem importância. A gente não consegue imaginar o cargo de Embaixador nos Estados Unidos vazio, nem em um país da Europa. O que a gente vê é disputa política por esses cargos. E quando é o continente africano, o Brasil passa essa mensagem: um certo desinteresse e, claro, de um desengajamento que é muito frustrante”, pondera.

Alguns diplomatas e embaixadores na África destacaram que “o problema é antigo, não é deste governo”. A doutora Renata Albuquerque lembra que, depois de um presidente que passou quatro anos sem fazer uma visita oficial sequer ao continente africano, em referência a Jair Bolsonaro, criou-se uma expectativa muito grande quando o atual governo anunciou que priorizaria a retomara das relações do Brasil com a África.

“Não falo exatamente por eles, mas me parece que no lado africano também havia essa expectativa. E quando o Brasil faz isso, acarreta uma perda de credibilidade. Com a quantidade de cargos de tamanha importância vazios ele está demonstrando para os países africanos que ele não está cumprindo com a palavra”, disse.

Vinícius Assis, correspondente da RFI na África do Sul

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