Economia

Cúpula do Mercosul: Acordo com UE e falta de democracia na Venezuela expõem divisões no bloco

A 62ª Cúpula do Mercosul, realizada em Puerto Iguazú, na Argentina, terminou nesta terça-feira (4). Durante o evento, Uruguai pressionou Brasil por acordo com União Europeia, Paraguai pressionou o Congresso brasileiro por adesão da Bolívia, Venezuela ficou mais distante de regressar ao Mercosul e a Argentina se defendeu da acusação de protecionismo comercial.


Apesar do sorriso nas fotos, a reunião do Mercosul foi marcada por divergências.
AFP – NELSON ALMEIDA

A forma como enfrentar as negociações com a União Europeia (UE) por uma atualização do acordo comercial fechado em 2019 e os novos ataques à democracia por parte do regime de Nicolás Maduro evidenciaram as diferenças entre os países do Mercosul durante os discursos dos presidentes na reunião de Cúpula na cidade de Puerto Iguazú, na tríplice fronteira com Brasil e Paraguai.

Sobre o acordo Mercosul-União Europeia, enquanto Brasil e Argentina têm divergências com a proposta europeia, Paraguai e Uruguai, sem indústrias a defender, querem a conclusão do entendimento. O Paraguai pediu para o presidente Lula avançar na culminação do acordo com a UE e o Uruguai pediu que o líder brasileiro finalize com o acordo para gerar otimismo depois de 25 anos de negociações.

Em sintonia, a Argentina criticou o esforço desigual entre os dois blocos, sendo o Mercosul aquele que mais perde, e o Brasil apontou contra as novas exigências ambientais e contra a perda da política industrial.

“Estou comprometido com acordo com a União Europeia, que deve ser equilibrado e assegurar o espaço necessário para adoção de políticas públicas em prol da integração produtiva e da reindustrialização”, esclareceu o presidente Lula para, na sequência, enumerar os motivos de divergências para um entendimento.

“O Instrumento Adicional apresentado pela União Europeia em março deste ano é inaceitável. Parceiros estratégicos não negociam com base em desconfiança e ameaça de sanções. É inadmissível abrir mão do poder de compra do Estado, um dos poucos instrumentos de política industrial que nos resta”, citou Lula em discurso no plenário do Mercosul.

A contraproposta do Brasil ao Instrumento Adicional será primeiro apresentada aos parceiros do Mercosul. Depois das considerações de Argentina, Paraguai e Uruguai, o texto comum será encaminhado à União Europeia. O objetivo é que seja apresentado antes da reunião de Cúpula da Comunidade de Estados Latino-americanos e Caribenhos (CELAC) e da União Europeia, em Bruxelas, nos próximos dias 17 e 18.

Governos de direita

O acordo foi fechado em junho de 2019, mas nunca ratificado dos dois lados do Atlântico. À época,Brasil e Argentina tinham governos de direita, favoráveis ao livre comércio, postura que mudou, com matizes, em dezembro de 2019 na Argentina e em janeiro de 2023 no Brasil. Paraguai e Uruguai são ainda governados pela direita.

“Temos uma visão crítica daquilo que foi fechado, fruto de um esforço muito desigual entre as partes. O Mercosul foi o que mais cedeu, sendo o bloco com menor nível de desenvolvimento relativo”, denunciou o presidente argentino, Alberto Fernández, que deixará o cargo em dezembro.

Fernández também criticou as novas exigências da União Europeia em termos ambientais e atribuiu ao protecionismo europeu a culpa pela falta de avanços nos últimos quatro anos.“A apresentação de novas demandas em matéria ambiental, depois de quatro anos, durante os quais o processo negociador ficou virtualmente detido por diferenças políticas internas na Europa, apresenta-nos uma visão parcial de desenvolvimento sustentável. Uma visão excessivamente centralizada na questão ambiental, com nulo registro das três dimensões de sustentabilidade (ambiental, econômica e social) e da interação dessas entre si”, avaliou.E diante daqueles que o veem como protecionista, defendeu-se: “não estou no lugar isolacionista que alguns querem me ver parado. Quero acrescentar valor àquilo que produzimos porque, assim, poderemos ser protagonistas do futuro”.

Sem maiores objeções por parte do Paraguai e por um acordo urgente pelo lado do Uruguai, os dois presidentes pediram ao líder brasileiro que conclua o acordo.“Desejo sucesso ao presidente Lula nesse avanço e (destaco) a importância de culminar o processo de negociação”, apontou o presidente do Paraguai, Mario Abdo, que deixa o cargo em 15 de agosto.

“Sei que o presidente Lula vai se empenhar em finalizar o acordo com a União Europeia. Peço, por favor, que seja o gerador de um pouco de otimismo no meu já abundante pessimismo sobre este acordo porque 25 anos de negociação não é algo lógico”, clamou o presidente do Uruguai, Luis Lacalle Pou, visivelmente cansado de pedir pela abertura do Mercosul ao mundo.

Venezuela se distancia do Mercosul

A ausência de democracia na Venezuela foi outro ponto de discordância entre os países integrantes do Mercosul, separando Paraguai e Uruguai, críticos do regime de Nicolás Maduro, de Brasil e Argentina, num silêncio cúmplice.

A Venezuela tornou-se membro pleno do Mercosul em 2012, mas quatro anos depois, em dezembro de 2016, foi suspensa por não ter incorporado o arcabouço normativo do bloco. Em agosto de 2017, foi também suspensa por “ruptura da ordem democrática” e a decisão afirmava que “a suspensão cessará quando se verifique o pleno restabelecimento da ordem democrática na República Bolivariana da Venezuela”.

Brasil e Argentina querem a reincorporação da Venezuela ao bloco. Para isso, o regime de Maduro precisará dar sinais claros de vigor democrático, tendo as eleições do ano que vem como uma oportunidade de demonstração de liberdade política e de transparência. No entanto, a recente proibição da candidatura opositora de María Corina Machado é um banho d’água fria nas pretensões argentinas e brasileiras.

“O funcionamento do Mercosul não pode depender da coincidência ideológica entre os presidentes. Com muita preocupação, estou acompanhando o que tem acontecido na Venezuela. Quando aparece um caminho de saída, um roteiro de esperança com a realização de eleições com a participação da oposição, vimos rapidamente essa esperança se apagar com a proibição de María Corina Machado. O Paraguai não vê esse problema como uma concepção ideológica, mas como uma escandalosa colisão com os direitos humanos”, sentenciou o presidente paraguaio, Mario Abdo.

No Mercosul, todas as decisões precisam de unanimidade entre os sócios. E numa demonstração de que o episódio afastou a possibilidade de um retorno da Venezuela, o presidente do Uruguai, Luis Lacalle Pou, reforçou a sua rejeição ao regime autoritário.

“Todos aqui sabemos o que pensamos sobre o regime venezuelano. Todos temos uma opinião clara. A Venezuela não terá uma democracia saudável quando uma candidata como María Corina Machado é proibida por motivos políticos; não jurídicos. O Mercosul deve dar um sinal claro para que o povo venezuelano possa caminhar a uma democracia plena que hoje, claramente, não tem”, disparou Lacalle Pou.

Paraguai pede que Brasil aprove Bolívia

O presidente do Paraguai, Mario Abdo, também apontou contra o Congresso brasileiro por evitar tratar da adesão da Bolívia como membro pleno do Mercosul.

A Bolívia está em “processo de adesão” ao bloco desde dezembro de 2012. Os Congressos de Argentina, Uruguai e Paraguai já aprovaram esse pedido. O último passo necessário para que seja aceita é uma aprovação por parte do Senado brasileiro, mas, por razões ideológicas, esse processo está bloqueado.

O governo do presidente boliviano, Luis Arce, é de esquerda; o Senado brasileiro, de maioria de direita. O governo boliviano é um aliado do regime de Nicolás Maduro. Essa associação é vista como preocupante pela direita.

“O Paraguai renova o seu compromisso para a entrada plena da Bolívia ao Mercosul. Isso depende do Congresso brasileiro. Acredito que a Bolívia possa ser um sócio estratégico para fortalecer o Mercosul”, pediu Mario Abdo em solidão. Nem mesmo a Bolívia tocou no assunto durante o discurso do presidente Luis Arce.

Márcio Resende, correspondente da RFI em Buenos Aires

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Botão Voltar ao topo