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Se estivesse vivo, fundador da Turquia moderna não teria votado em Erdogan, diz cientista político

Ex-professor de Princeton e Columbia, e hoje reitor da Universidade Iṣik, em Istambul, o cientista político turco Hasan Büllent Kahraman é um especialista na história e arte da Turquia. Nos 570 anos do aniversário da tomada de Constantinopla [antigo nome de Istambul] pelos otomanos, ele conversou com a RFI sobre os vestígios dessa imponente herança cultural nos dias de hoje e sobre a aurora do novo governo turco no centenário de Atatürk, considerado o pai da Turquia moderna, em 2023.


Portal em Istambul por onde qual passou o sultão Mehmed II em 29 de maio de 1453, durante a tomada de Constantinopla pelos otomanos, há 570 anos.
© RFI / Marcia Bechara

RFI – Tivemos eleições neste domingo (28) e Recep Tayyip Erdogan foi reeleito. No seu ponto de vista, quais são as consequências imediatas desta eleição para a Turquia?

Hasan Büllent Kahraman – Todas as eleições têm suas consequências naturais e esta também terá seus resultados. As pessoas que conhecem a história política passada da Turquia podem ter um ponto de vista diferente sobre essas eleições. Em poucas palavras, é uma surpresa porque a má administração econômica, por exemplo, e as deficiências e restrições econômicas, os problemas econômicos que surgiram nos últimos dois anos, não causaram tanta rejeição quanto esperávamos das pessoas. E então veio o terremoto. Ali ele foi um gênio. Usou o terremoto e os resultados do terremoto de uma maneira muito inteligente e esperta. Nós não entendemos por que ele passou tanto tempo na área do terremoto na Turquia, o que significa uma grande parte do território, na qual vivem principalmente os curdos. Ele foi e saiu de lá com um grande apoio. Agora entendemos que essa era sua visão, que ele acreditava que se investisse pessoalmente naquela área e usasse as possibilidades do Estado, o resultado seria positivo para ele. Depois, tem a razão pela qual as deficiências econômicas não impressionaram as pessoas na Turquia. Os confrontos culturais continuam sendo um grande agente e fator determinante na Turquia. Trabalhei por mais ou menos 30 anos como colunista nos jornais diários mais importantes daqui e, é claro, eu estava escrevendo artigos que abordavam o assunto. Eu escrevia artigos abordando o assunto do ponto de vista da ciência política, da história política. Eu fazia uma análise dizendo que a Turquia é controlada por dois agentes principais: o centro, que significa as áreas metropolitanas, e a periferia, que significa o povo em geral. Veja as cidades e as áreas metropolitanas. Nelas, o Partido Republicano do Povo, o principal partido de oposição, foi apoiado pelos eleitores, e essas pessoas moram no litoral da Turquia. Já a Anatólia (interior) apoia totalmente Erdogan. Esse confronto continua e ainda determina os fundamentos da política turca. O outro fator determinante é o conflito entre a etnia dominante, que é a turca, e a curda. Os turcos e a minoria curda, ou, olhando para o lado religioso, a maioria sunita e a minoria alauíta. Portanto, a cultura ainda desempenha o papel mais importante e significativo na determinação da política turca. Nessa eleição, as pessoas ainda acreditavam que os fatores econômicos, as condições econômicas, superariam o poder determinante das questões culturais. Isso não aconteceu. Quero dizer, Isso é um resultado claro dessa eleição.

O cientista político e historiador Hasan Büllent Kahraman em Istambul, 29 de maio de 2023.
O cientista político e historiador Hasan Büllent Kahraman em Istambul, 29 de maio de 2023. © RFI / Marcia Bechara

RFI – E, do outro lado do espectro politico, Kemal Kiliçdaroglu fazia exatamento o oposto que Erdogan, se afastando dos curdos para se aproximar dos ultranacionalistas…

HBK – É verdade, eu não poderia concordar mais. Na verdade, Kiliçdaroglu cometeu dois grandes erros. Primeiro, ele não levou em consideração as eleições parlamentares. Ele perdeu o parlamento de forma muito drástica. E, entre o primeiro turno das eleições e o segundo, ele entrou em pânico, e se manifestou de uma maneira que não condizia muito com ele mesmo. E então ele realmente mudou para o outro lado e entrou em um acordo com os ultranacionalistas. Quando você faz um acordo desse tipo com o partido ultranacionalistas turcos, você não pode exigir a confiança dos curdos.

RFI – Vamos falar sobre a abordagem econômica dessa eleição. Os especialistas dizem que a lira turca vai entrar em colapso…

HBK –  É certo que a taxa de inflação aumentou tremendamente nos dois anos em que estou dirigindo esta universidade, por exemplo. Temos 7500 alunos e, é claro, nós compramos produtos, serviços, os terceirizamos. E é muito difícil para qualquer pessoa na Turquia administrar uma instituição nessas condições econômicas. Erdogan não acreditava no poder da inflação. Ele achava que isso era apenas um pequeno problema que ele poderia resolver facilmente, o que não aconteceu, e também há uma política que ele vem seguindo, baixando as taxas de juros, dizendo que são as taxas de juros que estão causando a inflação. Fiz mestrado em economia e nunca vi nenhuma teoria como essa. Essa medida, é claro, aumentou a inflação e ela chegou a 200% em alguns momentos. Temos lido que as reservas do Banco Central turco estão diminuindo e que outra crise econômica está por vir. Bem, eu não sei. Quero dizer, acabei de ouvi-lo na TV e Erdogan estava dizendo que, após as eleições, ele iria imediatamente para a Arábia Saudita ou para outros países do Oriente Médio para conseguir dinheiro. A Rússia está apoiando a Turquia. A Turquia está jogando um jogo completamente diferente na política externa, diferente do convencional. A partir disso, Erdogan poderia encontrar a solução para os problemas econômicos existentes. Caso contrário, a Turquia não poderá continuar assim.

Portal em Istambul por onde qual passou o sultão Mehmed II em 29 de maio de 1453, durante a tomada de Constantinopla pelos otomanos, há 570 anos.
Portal em Istambul por onde qual passou o sultão Mehmed II em 29 de maio de 1453, durante a tomada de Constantinopla pelos otomanos, há 570 anos. © RFI / Marcia Bechara

RFI – A questão dos migrantes é um ponto sobre o qual tenho conversado com algumas lideranças sírias aqui em Istambul, em algumas organizações. Elas consideram que Erdogan já está fazendo algumas negociações com Bashar al Assad para enviá-los de volta para a Síria e eles temem que, se voltarem para casa, serão mortos ou perderão seus empregos, ou suas famílias estarão em risco. 

HBK –  Erdogan ou qualquer outra pessoa não pode enviar os migrantes de volta para casa, como quer o chefe do partido ultranacionalista. Não estamos vivendo nos dias nazistas da Alemanha. Não podemos colocá-los em vagões e depois enviá-los ou transportá-los para seus países de origem. Alguns deles estão há 10 anos na Turquia, a maioria se tornou cidadãos turcos e se casaram aqui. Eles têm filhos aqui. As crianças estão frequentando as escolas e qualquer pessoa que tenha nascido na Turquia é um cidadão turco. Essa é uma história muito, muito complicada. O pior lado ou o lado desagradável desse problema é que não temos conhecimento de quantos imigrantes ilegais estão passando pelas fronteiras e entrando no país. Eu morei nos Estados Unidos por longos períodos e a imigração ilegal também é um problema. Na fronteira do México com os Estados Unidos, perguntei aos oficiais: “O que está acontecendo aqui?” E o policial disse: “Bem, a economia precisa dessas pessoas. Portanto, permitiremos que uma certa quantidade de pessoas entre no país ilegalmente porque isso fornece mão de obra muito barata para a economia”. A Turquia também pode estar fazendo isso, mas, por outro lado, há alguns problemas. Alguns jornalistas ou estudiosos argumentam que essas pessoas, esses migrantes ilegais, pertencem a grupos islâmicos extremistas. Que eles são um tipo de militantes e desejam permissão para entrar a fim de diluir o número de pessoas secularistas [laicas] que vivem na Turquia, e assim por diante. Esses são argumentos muito, muito fortes. Argumentos temerosos e que precisam ser esclarecidos. No entanto, se o problema são as pessoas que imigraram para a Turquia há 10 anos. A economia ou a estrutura social  absorveram essas pessoas, e não vejo sentido em dizer que todas elas deveriam ir embora.

RFI – Gostaria que o senhor falasse um pouco sobre a herança de Atatürk na Turquia contemporânea. Durante a cobertura das eleições, vi seu retrato nos muros de todas as escolas que abrigavam colégios eleitorais. Se ele estivesse vivo hoje, num exercício de imaginação, que comentários teceria sobre a reeleição de Erdogan?

HBK – Embora tenha sido um gênio do início do século 20, Atatürk morreu no ano de 1938, com 57 anos de idade, e nasceu na última década do século 19. Ele era uma personalidade criada pela cultura positivista do século 19.  Acreditava no materialismo vulgar da ideologia alemã. Ele era uma pessoa pró-ciência e queria muito mudar a Turquia. Mas o curso da mudança que ele impôs radicalmente era uma longa tradição iniciada pelo sultão otomano da Turquia, exatamente no ano em que ocorreu a Revolução Francesa, 1789. E, desde então, a Turquia e o antigo Império Otomano tentaram se tornar um país pró-Ocidente. De fato, o Império Otomano era, é claro, ideologicamente baseado estruturalmente nas regras islâmicas. No entanto, ele era do Leste Europeu. E havia o Império dos Bálcãs. E, claro, ele tinha relações tremendamente complicadas, complexas, de fato, com o Ocidente, digamos assim. Quero dizer que o Império Otomano era totalmente próximo. O modo de vida ocidental na Turquia é uma história muito, muito longa, e profundamente enraizada. Atatürk é um gênio indiscutível. No século 20, ele era extremamente prestigiado na Turquia devido ao seu cargo de chefe militar na Guerra da Independência da Turquia, que ocorreu em 1919. Ele foi uma pessoa vitoriosa e fez todas essas reformas na Turquia. Ninguém tem problemas com isso. As ideias ou a ideologia de Atatürk, às quais dediquei toda a minha vida para entender e interpretar filosoficamente, dizem respeito ao método científico e secularista [laico]. E, é claro, o secularismo é extremamente importante nessa ideologia, para implementar as outras mudanças que ele queria. Isso criou um tipo de conflito na Turquia entre os conservadores. Se ele estivesse vivo, o que diria sobre a eleição de Erdogan? Ora, se ele estivesse vivo, nada disso teria acontecido. A igreja [ortodoxa] de Santa Sofia, acabou virando um museu por causa dele, e é claro que ele não permitiria que ela voltasse a ser uma mesquita [como Erdogan o fez]. É claro que essa é uma abordagem ideológica, uma vitrine ideológica de Erdogan que mostra as diferenças entre o poder político existente na Turquia e o exterior. Atatürk teria definitivamente apoiado Kemal Kiliçdaroglu nestas eleições, ele certamente teria se distanciando totalmente, assim como seu partido, sua política e sua ideologia, dos grupos muçulmanos.

RFI – Hoje, 29 de maio de 2023, celebra-se os 570 anos da tomada de Constantinopla aqui em Istambul. Quais os vestígios dessa grande herança cultural na Turquia de hoje?

HBK – Essa é uma questão muito triste. Na verdade, sempre acreditei que Istambul sempre esteve sob o controle e o domínio do Império Otomano, sendo uma cidade poliglota multicultural e multirreligiosa, com os gregos. Os judeus romanos migraram para Istambul em 1492, quando foram exilados da Espanha. Todos eles estavam de mãos dadas na Turquia e a cultura otomana é o resultado de todas essas diferentes abordagens culturais. Sou muito familiarizado com a música otomana e ela foi composta pelos turcos, pelos armênios, pelos judeus, pelo povo grego e, é claro, pela música que herdaram do Império Bizantino, por meio deles. A cultura judaica cristã também é audível na música otomana, e você pode ver essa abordagem em todas as artes na própria vida cotidiana. Mas a partir de 1912, quando o turquismo apareceu como a principal ideologia na Turquia, e depois da proclamação da República, essa estrutura multicultural de Istambul, da Anatólia e da Turquia, etc, se transformou em uma estrutura cultural monolítica homogênea baseada na cultura turca sem levar em conta judeus, armênios e gregos. Eles hoje são uma minoria muito pequena em istambul, o que é um fato muito triste, e a Turquia é uma nação multicultural. Mesmo quando eu era criança, lembro-me de meus vizinhos, armênios e gregos. Qualquer reminiscência da cultura grega, da cultura da cultura judaica ou da cultura armênia é positivamente herdada e está viva na cultura turca. A maioria, é claro, agora são os turcos, os turcos muçulmanos. O número de turcos muçulmanos aumentou e eles deportaram, por exemplo, os gregos em 1923 e também em 1965 para a Grécia, e nós perdemos muito com isso. A perda da estrutura multicultural do país é um fato muito triste para mim. Ainda assim, é possível encontrar algo muito profundo, os traços de todas essas culturas antigas. Mas o número de turcos muçulmanos aumenta e o próprio Islã está se tornando cada vez mais visível nos últimos 30 anos.

Noticiário Francês

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