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Carlos Ramos Diniz x Guardiola: a essência do futebol brasileiro e o colonialismo europeu

Foto: O Globo
Seja no 4-2-4 ou no 5-3-2, através de jogo de posição ou jogo funcional, respeitando as diversas formas de ver o futebol. Acreditando sempre na beleza do jogo, e nas diversas interpretações do mesmo. Falo de tática tentando fugir do professoral, mas sempre buscando ir além. Como em uma conversa de bar. Sem espaço para a saideira.

Com Zagallo em 1970, foram cinco camisas 10. Em 1982, foram 11 anjos do futebol em campo sob o comando de Telê Santana. O futebol brasileiro foi referência (e não necessariamente campeão) sempre que soube usar bem a sua essência. A essência da “escola brasileira de futebol”. O termo, ofuscado nos últimos anos pela influência europeia em nosso jogo, voltou a ser adotado por um estrangeiro para falar sobre um time brasileiro. O estrangeiro é Pep Guardiola, e o time em questão é o Fluminense.

Pep sempre foi um fã da “escola brasileira”. Saboreou, como muitos espanhóis, o time de Telê que, em 1982, não foi campeão do mundo, mas que, como Sócrates disse, saiu com a cabeça erguida, como se tivessem ganhado.

“Essa seleção foi a mais maravilhosa que existiu. Foi uma seleção extraordinária. Um livro é bom, um filme é bom, um time é bom quando se passam 30, 40 anos e ainda se fala nele. E ainda se fala dessa equipe”, disse Guardiola, anos mais tarde, para a Espn.

Pep, portanto, é um fã do futebol brasileiro. E terá, como adversário na final do Mundial de Clubes, sexta, às 15h (de Brasília), o Fluminense, que voltou a representar a essência do nosso jogo. Depois de um processo já apelidado de “europeização do futebol brasileiro”.

A europeização do futebol brasileiro

Muito se discutiu nos últimos anos que o futebol brasileiro deixou de lado sua essência. Mesmo nas conquistas das duas últimas Copas do Mundo. A perda do talento para os grandes clubes da Europa, e a consequente lapidação do mesmo (talento) através dos conceitos por lá aplicados, é apenas uma das explicações para isso.

O Brasil, de fato, deixou de produzir o espetáculo para, na verdade, exportar matéria-prima para o continente europeu. Mas a nova ordem colonizadora do futebol chegou nas entranhas do esporte praticado aqui também através do componente tático. Para competir, passou a ser praticamente obrigatório aceitar os princípios aplicados na Europa. Criou-se o termo “europeização do futebol brasileiro”.

O jogo posicional, que predomina na Europa há tantos anos, deixou o relacionismo, ou jogo funcional sul-americano, como peça de um museu. Não apenas a seleção brasileira passou a aplicar conceitos posicionais, mas também nossos clubes. O que não seria problema, se não fosse uma aniquilação do jogo funcional. Uma ruptura abrupta de um conceito que fez parte da nossa identidade como nação. Uma espécie de Casa-Grande e Senzala em forma de jogo de futebol, uma representação cultural com a bola nos pés.

Reencontro com a essência?

O jogo posicional não é o principal culpado de a seleção brasileira estar há mais de duas décadas sem conquistar uma Copa do Mundo. Mas nosso afastamento da identidade de “país do futebol”, com a perda da essência do jogo que nos alçou a esse patamar, parece ser um sinal do nosso velho “complexo de vira-lata”, criado e definido por Nelson Rodrigues, décadas atrás, como “a inferioridade em que o brasileiro se coloca voluntariamente em face do resto do mundo”. Sem condições de se equiparar as grandes potências europeias da nossa forma, que caminho resta além de se espelhar nelas?

Mário Filho, o homem que dá nome ao estádio brasileiro mais icônico, foi sábio e atemporal quando disse que “um dia, a fome do povo falará mais alto do que o tilintar das taças palacianas”. A fome do povo, nesse caso, é fome de bola. Nem a atual conjuntura que fez o Brasil praticamente ser de novo “colonizado” pelos europeus, futebolísticamente, impediu que um novo movimento surgisse.

O Fluminense, de Fernando Diniz, tenta ser uma quebra de paradigma. Diniz, antes de tudo, apresentou essa quebra de paradigma em outros lugares. Até mesmo nas Laranjeiras. Mas não alcançou o sucesso. Foi alvo de críticas, mal interpretado e até mesmo comparado com Pep Guardiola em termos de proposta de jogo. Mas é como confundir alhos com bugalhos.

Se Pep preza pelo jogo posicional, que o colocou entre os melhores técnicos da história do esporte, com toda justiça, Diniz sempre se definiu como um treinador que procura um jogo “aposicional”. Diniz é o reencontro com a essência do futebol brasileiro.

O Flu, de Diniz, conceitualmente, se aproxima muito mais do futebol brasileiro que encantou o mundo, como em 1982, do que do Barcelona, de Pep, ou do City, do catalão. São propostas válidas e vitoriosas dentro de seus respectivos contextos. Mas Diniz reforça a importância da liberdade posicional dos jogadores em campo, desde a primeira fase de construção até chegar em zonas de finalização, para criar situações de superioridade numérica no jogo. Como fazia o Brasil, em 1982. Ou em 1970.

“Nossos laterais podiam jogar no meio. O Leandro (lateral) era o jogador mais técnico do time. O Luizinho (zagueiro) podia ser volante. Era um time que não começava jogando. Ele saía jogando. Sem dar chutão. Para isso, é preciso ter gente com qualidade de saída, personalidade, sem medo de errar, e treinar muito”, disse Paulo Roberto Falcão, certa vez, sobre a seleção de Telê.

A forma “aposicional” de jogar talvez tenha sido a grande marca da seleção de Telê. Como Marcelo, Júnior era visto diversas vezes no meio, ou avançando o campo todo até chegar na outra lateral. Leandro a mesma coisa, com liberdade para se posicionar com os zagueiros na saída, avançar pelo meio, abrir pela direita… Falcão e Dirceu alternavam posição muitas vezes com os próprios laterais. Zico flutuava no meio, pisava na área… Era uma espécia de “desobediência tática” organizada. Como o Flu, de Diniz. Obviamente, não estamos comparando equipes, mas sim conceitos.

“Esse time foi talhado para ser um time alegre, um time brasileiro, um time de cara que gosta da bola”. Essa frase poderia ter sido dita por Zagallo. Por Telê. Por Falcão. Mas foi por Fernando Diniz, antes da semifinal do Mundial contra o Al Ahly. Resume a essência de sua equipe. E também a essência do futebol brasileiro.

O teórico britânico Jamie Hamilton previu o duelo entre Diniz e Pep como o duelo de Diniz contra o “homem-robô”, ou o “homem-máquina”. Isso em 2022. Sem ter a mínima ideia que esse duelo poderia sair da teoria. É bastante cruel limitar o futebol dos times de Pep a movimentos robóticos. A liberdade criativa do indivíduo aparece, sim, no último terço. Como já abordamos, inclusive, nesta coluna: há superioridade qualitativa no jogo posicional (leia mais aqui).

O encontro de Pep com Diniz, porém, é um duelo tático antagônico. Que traz de volta a essência do futebol brasileiro, contra o colonialismo europeu. Se o Fluminense, de Diniz, não pode fazer frente ao City como o Santos, de Pelé, fez ao Benfica, ao menos não deixará de representar a “escola brasileira de futebol” durante os 90 minutos.

O Gol 

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