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“O mundo não vai ser o mesmo depois do conflito da Ucrânia”, diz cientista político


Soldados russos atiram morteiros em direção a tropas russas na linha de frente perto da cidade de Vuhledar, na região de Donetsk (11/2/23).
© REUTERS – MARKO DJURIC.

“A transformação da Ucrânia em nação independente em 1991 foi um golpe duro para a Rússia – juntas eram parte da União Soviética e antes disso, do próprio império russo. São dois polos muito interligados culturalmente”, explica.

“A Rússia brigou durante muitos anos com a Ucrânia, tanto pela posse da frota do Mar Negro, que ficava estacionada ali em Sebastopol, quanto pela de armamentos nucleares. E, da noite para o dia, literalmente, no dia 26 de dezembro de 1991, a Ucrânia surgiu como a terceira maior potência nuclear do planeta”, acrescenta Rudzit.

“E aí houve uma negociação durante alguns anos para que finalmente, em 1995, fosse assinado o memorando de Budapeste entre Ucrânia, Rússia, Grã-Bretanha, Estados Unidos, em que a Rússia se comprometia a respeitar a segurança da Ucrânia, uma vez que Kiev devolvesse as ogivas nucleares para a Rússia e assinasse o Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP). Então, desde aí, a Ucrânia vem falando que a sua integridade está assegurada por esse memorando”, continua o analista.

Rudzit aponta para outros eventos que podem ter provocado ressentimento por parte de Vladimir Putin, como a Revolução Laranja, em 2004-2005, “quando dois Viktors – o Yushenko, pelo lado oeste mais ucraniano, e o Yanukovich, pelo lado leste ucraniano russo, disputam uma eleição”. O candidato pró-Russia ganhou, provocando uma série de protestos cujo símbolo era a bandeira laranja, representando o lado ucraniano. Uma nova eleição foi convocada e o representante ucraniano foi eleito.

A praça Maidan, no centro da capital Kiev, abrigou os principais protestos contra a política do ex-presidente Viktor Yanukovitch e se tornou o símbolo da contestação ucraniana.
A praça Maidan, no centro da capital Kiev, abrigou os principais protestos contra a política do ex-presidente Viktor Yanukovitch e se tornou o símbolo da contestação ucraniana. (©Reuters)

Em 2014, agora com o pró-Rússia Yanukovich na presidência, a Ucrânia inicia negociações para um acordo de livre comércio com a União Europeia. Putin intervém e propõe uma área de livre comércio entre Rússia e Ucrânia para bloquear as discussões com a Europa.

“Além disso, Moscou pagaria toda a dívida externa ucraniana daquele ano”, acrescenta o cientista político. O afastamento da Ucrânia da União Europeia gerou uma revolta popular, a revolução Maidan. “Putin alega que foi interferência ocidental – semanas depois houve a invasão da Crimeia e só posteriormente Putin admitiu a participação de tropas russas e de ucranianos de Lugansk e Donetsk. Ou seja, para os ucranianos, essa guerra começou em 2014”, explica.

Rudzit lembra ainda a proposta, desde 2008, para que a Ucrânia entrasse na OTAN, feita pelo ex-presidente George W. Bush. Isso fez soar o sinal de alarme entre os russos, pois significaria que os tanques americanos poderiam se postar a cerca de 600km da fronteira dos dois países. “Isso, na mentalidade russa, é inadmissível, porque para o russo, a maior ameaça sempre veio do Oeste. Não podemos esquecer que as duas grandes invasões da Rússia – por meio de Napoleão e Hitler – vieram do Oeste, e passaram por ali. Então, a segurança dessa fronteira oeste sempre foi algo muito, muito caro para os russos. E eu vou ser muito sincero, eu desconfio que Washington quis essa guerra”, opina.

Energia como arma de dependência

Gunther Rudzit lembra que os Estados Unidos sempre tentaram evitar que a Europa comprasse petróleo da Rússia – ou União Soviética – desde o início do século XIX, a fim de que os europeus permanecessem dependentes dos americanos.

“A gente não pode esquecer que, do final do século 18 para o início do século 19, até mais ou menos a década de 1950, os maiores produtores e exportadores de petróleo do mundo eram os Estados Unidos. Essa dependência cresceu depois da Primeira Guerra Mundial e disparou depois da Segunda Guerra Mundial. Só que com a Segunda Guerra Mundial, os americanos perceberam que eles deveriam poupar, guardar o seu petróleo para caso um conflito ocorresse, uma nova guerra. E é por isso que os europeus passaram a ser dependentes do petróleo e depois do gás do Oriente Médio”.

Foto de arquivo de 4 de abril de 2009 mostra usina de produção de gás em Ras Laffan, no Catar.
Foto de arquivo de 4 de abril de 2009 mostra usina de produção de gás em Ras Laffan, no Catar. ASSOCIATED PRESS – Maneesh Bakshi

Os americanos “conseguiram evitar, durante muitos anos que a Europa comprasse gás da União Soviética”, continua. A crise econômica dos anos 1980 mudou essa tendência. A Alemanha foi a primeira cliente do gás soviético, seguida por outros países. “Isso para a Europa, em especial para a Alemanha, foi muito importante, porque o gás russo é muito mais barato do que o importado. Isso permitiu que a economia alemã crescesse como cresceu depois da reunificação. Devido a isso, essa energia barata conseguiu competir durante muitos anos e compete ainda com produtos chineses. A Alemanha deixou de ser a maior exportadora do mundo para a China, mas continua competitiva. Com a guerra, você definitivamente rompeu esse lastro. Os europeus voltaram a ser dependentes da importação de gás, principalmente do Oriente Médio e também dos Estados Unidos, que têm o gás de xisto”. Rudzit lembra que a dependência europeia dos americanos não virou apenas energética, mas militar também.

“O projeto de uma segurança europeia própria é um projeto antigo da França, depois da Alemanha. Isso está enterrado porque agora eles dependem fundamentalmente dos Estados Unidos”, analisa.

Putin sem alternativas

“Mas houve uma série de fatos que mostram que o governo Biden praticamente deixou Putin sem alternativas, a não ser invadir. Isso começa já em 7 de fevereiro [de 2022], com o encontro do Macron com Putin, quando o presidente francês pede garantias de segurança da Rússia para a Ucrânia. Dia 12, Putin conversa com Macron e Biden por telefone, reafirmando isso. No dia 14 de fevereiro, o ministro [russo das Relações Exteriores] Lavrov diz a Putin que o acordo é possível. Dia 15, Olaf Scholz [chanceler alemão] se encontra com Putin e diz ao presidente russo que a entrada da Ucrânia na OTAN não estava na agenda. No mesmo dia, Putin diz que vai retirar algumas tropas da fronteira”, diz o especialista.

“No mesmo dia, à noite, Scholz conversa com Biden por telefone e o americano diz que são necessárias provas concretas dessa retirada. Horas depois, Biden diz que não teve sinais disso. No dia 18, o secretário de Estado americano, Antony Blinken, concorda com um encontro com Lavrov na Suíça. Dia 21, Macron diz que Biden e Putin concordam, em princípio, em se reunir. Dia 22, a Rússia diz que está pronta para negociar e que Lavrov vai para Genebra discutir a crise com Blinken. No fim do dia, Blinken diz que o encontro é impossível, diante da progressão de tropas russas em direção à Ucrânia. Dia 23, a Rússia acusa os Estados Unidos de atrapalhar as negociações com a Ucrânia. E aí, dia 24, a invasão”, resume Rudzit.

Refugiados ucranianos deixam o país em direção à Moldávia
Refugiados ucranianos deixam o país em direção à Moldávia AP – Sergei Grits

O especialista acredita que houve mais alguns momentos em que seria possível uma negociação direta entre Rússia e Estados Unidos e que, por decisão dos Estados Unidos, esses encontros não ocorreram. “No dia 26, dois dias depois da invasão, ocorre a famosa ligação do presidente Biden que oferece um avião para Zelensky sair da Ucrânia. Ele respondeu com a famosa frase ‘Eu não preciso de um avião, eu preciso de armas’. O Ocidente estava certo de que a Ucrânia cairia em questão de dias. Hoje em dia se fala que se esperava no máximo 72 horas”.

Rudzit aponta outros momentos importantes do conflito, como a demonstração de força de Moscou, quando enviou uma coluna de tanques de 60km em direção a Kiev no final de fevereiro. “No dia 12 de março, Biden anuncia mais ajuda à Ucrânia, principalmente em armamentos. E aí, finalmente, no dia 1° de abril, as tropas russas recuam da direção de Kiev. Isso para mim é o fim da primeira fase. Mostra que os planos russos tinham dado completamente errado. ”

Vista da usina de Azovstal, em Mariupol, 17 de maio de 2022.
Vista da usina de Azovstal, em Mariupol, 17 de maio de 2022. AP – Alexei Alexandrov

Nos meses seguintes, a ofensiva russa avança, mas não sem resistência. A usina de Azovstal, por exemplo, se transformou em símbolo da resistência ucraniana. Em agosto e setembro, fortalecida com armas ocidentais, a Ucrânia lança uma contra ofensiva na região de Kherson.

Milhões de ucranianos já deixaram suas casas e o país desde o início do conflito.

Em outubro, forças ucranianas explodem a ponte que liga a Crimeia à Rússia. Moscou anuncia a anexação de quatro regiões ucranianas – Lugansk, Donetsk, Kherson e Zaporíjia, apesar da condenação internacional. Em novembro e dezembro, a Ucrânia continua reavendo territórios e enfraquecendo as forças russas.

De uma guerra anunciada, que acabou por surpreender pela duração, o mundo se vê diante de um desenlace imprevisível. “Putin pode se sentir encurralado e reagir escalando”, teme Gunther Rudzit. “O mundo não vai ser mais o mesmo depois dessa guerra”.

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